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"Meu objetivo é golpear as mentes"!

 

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Palestrante e provocativo, Alex Garcia é conhecido como o "Pai da Surdocegueira no RS", saiba mais na entrevista do PMG. Nascido em 1976, na cidade de Santa Rosa, o gaúcho foi diagnosticado com uma rara síndrome cujas características incluem a Surdocegueira progressiva. Primeiro surdocego brasileiro a ingressar em uma universidade, hoje Alex é pós-graduado em Educação Especial pela UFSM / RS, é palestrante, escritor, membro da World Federation of Deafblind (WFDB) e da Aliança Brasileira de Genética, além de colunista e consultor.

"Acredito, muito mesmo, que todos nós, com nossas diferenças, na realidade e verdade, somos todos, em essência, obras grandiosas. Nesta crença, que por certo, se tornou minha religião, as lutas encontram ponto de equilíbrio, e assim, sustentando meu ser incompleto, sigo adiante".

Portal Mara Gabrilli: A Libras é um recurso de comunicação para o surdo. No seu caso, que mecanismo ou ferramentas permitem que você se comunique e entenda o mundo que o cerca?

Alex Garcia: Nesta questão de comunicação de surdocegos e sempre bom recordar que existem dois grupos de surdocegos: os pré-simbólicos, aqueles que adquiriram as deficiências audiovisuais antes da estruturação da linguagem, da comunicação e de uma língua. E os pós-simbólicos, que são aqueles que adquiriram as deficiências audiovisuais depois da estruturação da linguagem, da comunicação e de uma língua. E é neste grupo que devemos em um primeiro momento observar se a pessoa surdocega nasceu surda ou não. A surdez que vai delinear o modelo de comunicação. Se a pessoa surdocega nasceu surda e depois perde a visão é provável que sua comunicação terá como base a sua língua materna, ou seja, a de sinais. A língua de sinais nestes casos será adaptada para a inexistência ou déficit visual do surdocego, adaptando-a para ser recebida por este, pelo movimento ou pela proximidade. Já para aqueles surdocegos que não nasceram surdos, é o meu caso, a comunicação, provavelmente, terá como base o português. Assim sendo, tenho um modelo de comunicação e faço uso de uma tecnologia. O modelo de comunicação seria a escrita na palma da mão. As pessoas escrevem com letras de forma na palma da minha mão, uma letra sobre a outra, dando uma pausa para a separação de palavras. Como tecnologia, faço uso de um notebook com um potente ampliador de caracteres. Ainda posso ver as letras quando estão bem grandes e com bastante contraste. Conhecer as formas de comunicação das pessoas surdocegas é de fundamental importância para a inclusão. [Leia mais sobre o assunto, clique aqui]

PMG: Você foi o primeiro surdocego no Brasil a concluir uma faculdade. Como foi sua trajetória antes de chegar ao ensino superior?

Alex: Não vou aqui dizer que minha caminhada até a universidade, pré-escola, ensino fundamental e médio foi extremamente dolorosa. Esta caminhada teve barreiras? Sim e muitas. Preconceito? Também. Mas sempre destaquei e vou repetir. Fui uma criança e um adolescente "diferente", mas, que tive todo o apoio da família e assim sendo, apesar dos pesares, as barreiras foram sendo derrubadas e os espaços conquistados. Meus pais foram decisivos neste momento da história, pois, acima de tudo, nunca me super protegeram, sempre me mostraram a realidade da vida mesmo que fosse dolorido. Eu deveria me desenvolver e me desenvolvi aprendendo, muitas vezes, pelo modo mais amargo. Como base, recebi de meus pais todas as experiências possíveis para manter uma vida com boa independência e acima de tudo com responsabilidade. Entrei na pré-escola com 6 anos. Aprendi a ler e escrever. Neste momento não conhecia o que era discriminação. Convivia com crianças de minha idade. Ainda, minha mente de criança tinha dúvidas de porque não podia brincar como as outras crianças. Minha mãe todos os dias conversava sobre minhas diferenças. Da hidrocefalia, das deficiências ósseas e musculares, e da questão audiovisual para que crescesse sem dúvidas de minhas reais condições. As limitações com o tempo eu mesmo iria experimentar.

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PMG: Além do apoio familiar, você contou com o apoio dos professores?

Alex: Na escola, principalmente, a fundamental, dos 7 aos 14 anos, recebi educação de alto nível, sob aspectos morais, éticos, e de disciplina, pois estudei em escola Salesiana. Já adolescente, iniciei o ensino médio. Foi neste momento que tive as primeiras experiências com a discriminação principalmente vindas de professores que consideravam "uma perda de tempo" ensinar para um surdocego. Nesta etapa que comecei a aprender que deveria lutar por meus direitos. Quando estes fatos aconteciam, eu e meus pais buscávamos as autoridades, pois percebemos que o sistema educacional era e ainda é imerso em trocas de favores. São diretores colocando "panos-quentes". Outros professores com o discurso "do deixa disso".

PMG: Alguma história curiosa sobre esta época?

Alex: Recordo com orgulho de ter, com 15 anos, mobilizado os colegas de escola em favor de uma árvore. Exatamente! Era um Umbú de cem anos que as autoridades educacionais insistiam em derrubar. Montei o Clube Ecológico Umbú Centenário e abraçados na árvore impedimos sua derrubada. Esta árvore se manteve em pé por mais 10 anos. Acabou caindo pelas "mãos da natureza", devido a sua avançada idade, mas não tombou pelas mãos humanas. Claramente percebi que o mundo das relações mudara rapidamente e que ser uma pessoa com deficiência teria impacto, para mim e para o meio, de agora em diante.

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PMG: E ao chegar à faculdade, você pode contar com recursos adaptados para suas necessidades?

Alex: Entrei para a faculdade em março de 1997. Fui à primeira pessoa com deficiência a ingressar no curso de Educação Especial da UFSM. Encontrei um curso sem nenhuma condição de ter uma pessoa com deficiência como acadêmico. No começo, muitos pensaram que eu seria uma espécie de "mascote". Rapidamente estes pensamentos começaram a mudar, pois perceberam que eu tinha posições e não estava muito a fim de mudar estas posições por pressão ou exclusão. Uma docente que conhecia minha trajetória me alertou: "Alex aqui você deverá ser um verdadeiro "Dobermann" para se formar. Você naturalmente irá chamar a atenção para o bem, mas, muitos não vão gostar. Você terá que ter acima de tudo identidade e propriedade". Assim me lancei de corpo e alma aos estudos. As adaptações, algumas eu mesmo tive que obter, e outras remetia o caso para a promotoria. Fui um brilhante "Dobermann". Já ministrava palestras internacionais com 6 meses de universidade. Desenvolvi vários projetos de pesquisa e escrevi de forma pioneira, vários artigos que vieram a colaborar com a educação de surdocegos no Brasil.

"Não sou herói, mas acredito, muito mesmo, que todos nós, com nossas diferenças, na realidade e verdade, somos todos, em essência, obras grandiosas".

PMG: De que mais se orgulha?

Alex: Apesar de minhas condições fui amplamente autodidata, reconheci claramente os amigos, mas também os inimigos. Compartilhei das lutas estudantis e iniciei trabalhos importantes na área de surdocegueira. Enfim, muitas foram as conquistas, mas foi depois de minha passagem que várias pessoas com deficiência ingressaram no mesmo curso. Acredito que tenha colaborado para abrir portas. Sei que nunca serei reconhecido por isso, mas é um fato e deste me orgulho.

PMG: As dificuldades que passou contaram na escolha por se graduar em Educação Especial? Que acha que tem a ensinar de mais importante?

Alex: Sim. Sem dúvida minha trajetória de vida pesou na escolha. Desde cedo, como já escrevi, tenho a igualdade no "sangue" e vejo na educação a melhor ferramenta de transformação social. Posso dizer que já ensino e dou exemplos há muitos anos. Ter sempre a coragem de fazer o que realmente quero, e não o que esperam que eu faça. De ter a coragem de falar o que realmente sinto e acima de tudo do incansável desejo de romper com a pressuposição, é algo que tenho a ensinar, apesar de os "Deuses" fazerem grandes esforços para impedir.

PMG: Você é palestrante e se comunica de maneira muito clara e precisa. O que acha que mais chama atenção nestes eventos?

Alex: Sem dúvida o meu entusiasmo, o meu tocar as pessoas e o "cara a cara olho no olho". Minhas palestras são sempre assim. Com muita energia e proximidade. Não acredito em reflexão sem proximidade. Sem toque. As pessoas precisam de fato sentir minha presença e eu preciso sentir a delas. Não uso slides ou algo escrito. Tudo será construído no momento sublime do encontro. Não a como negar. Meu objetivo é "golpear as mentes". Não estou ali para agradar a todos. Quem não gostar levante e vá embora ou vá para o banheiro fazer comentários degradantes sobre minha pessoa, como já aconteceu. Este modo de proceder é muito mais emocionante. Existem riscos, e muitos, como no ano de 2011, eu e meus pais fomos a Santa Catarina colaborar com um evento. Ministrei minha parte pela manhã e a tarde meus pais. Uma professora fez, na frente de 600 pessoas, a seguinte pergunta para minha mãe: "O Alex é deficiente mental?". Esta professora não deve ter gostado ou talvez nada tenha entendido durante as 3 horas que desenvolvi intensa reflexão sobre inclusão. Ou será que sem querer querendo acertei suas feridas?

PMG: Como acontece essa troca de percepções quando está diante destas pessoas?

Alex: Em geral ando entre as pessoas ou na frente delas. Assim me aproximo o máximo. As toco muito. Chego bem perto de seu rosto. Em geral as sinto pelo toque. Faço perguntas também. Uso para compreender, a escrita na mão ou o notebook com o ampliador. Em minhas palestras as pessoas também acabam sendo os ministrantes. Preciso interagir com as pessoas. Preciso de suas respostas.

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PMG: Você desenvolveu a primeira pesquisa em campo para localização de Surdocegos no Estado do Rio Grande do Sul, qual foi o resultado deste estudo?

Alex: Na verdade a pesquisa "Surdocego: onde estás?" foi à primeira pesquisa de campo desenvolvida no Brasil. Esta pesquisa foi o projeto de minha Especialização em Educação Especial. Foi desenvolvida no ano de 2001. Encontrei cerca de 80 surdocegos no Estado do Rio Grande do Sul. Foi esta pesquisa que alguns dias mais tarde me levaria a atuar no Governo do Estado do RS e a desenvolver de forma pioneira "o contexto de surdocego e de deficiências múltiplas do Rio Grande do Sul". Conheci a dura realidade que afetava os surdocegos de nosso Estado. Questionamentos nasceram em minha mente e desejos de igualdade e desenvolvimento pleno a todos começaram a mover minha razão e emoção. Sendo um líder na área da surdocegueira no Mundo e compartilhando experiências e valores com outros líderes mundiais, comecei a fazer avançar rapidamente o tema no Estado. Esses avanços refletiram na mudança da qualidade de vida dos surdocegos e de pesosas com deficiências múltiplas. Assim me torna "pai" de uma das mais significativas políticas publicas para surdocegos na história do Rio Grande do Sul e porque não dizer, do Brasil.

PMG: A ideia de fundar uma associação nasceu nesta época?

Alex: Demonstrei ser possível mudar a realidade e o destino dos surdocegos e multideficientes. Com tantos avanços, minha pessoa e o tema da surdocegueira começam a sofrer pressões por parte de pessoas ligadas a governos. O contexto começa a sofrer interferências partidárias e a ser usado como ferramenta para partidos, perdendo sua identidade. Tentei de todas as formas, defender os ideais, lutei até a exaustão de minha saúde física. Vencido, observei com grande dor tudo se perder. Então, decidi me unir com as famílias dos surdocegos e pessoas com deficiências múltiplas, amigos, colaboradores e conhecedores do movimento, e formar a Fundação da Associação Gaúcha de Pais e Amigos dos Surdocegos e Multideficientes – AGAPASM.

PMG: Muitas pessoas têm a impressão de que a surdocegueira trata-se de uma deficiência rara. Pelo jeito não... certo?

Alex: A surdocegueira na verdade não é tão rara assim. Pode não ter o mesmo número de outras condições. Acredito sim, que a surdocegueira é "invisível!" aos olhos e aos corações da sociedade e das autoridades. Esta invisibilidade tem a ver com o medo. As pessoas não acreditam que é possível viver sem escutar e sem enxergar. Este medo é tão grande que acabam não querendo saber, nem imaginar algo sobre a surdocegueira. Invisibilidade pela complexidade. Hoje no Brasil observo que tudo se move a favor do mais fácil. E é claro que a surdocegueira é mais "difícil" que a grande maioria das outras condições, precisando de mais dedicação. Dedicação. Essa palavra e seu significado não é o forte de nossa sociedade e de nossas autoridades, não é mesmo? Faço questão de lembrar que a invisibilidade não afeta apenas aos surdocegos. Afeta também as pessoas com outras deficiências múltiplas e as pessoas com doenças raras. Podemos refletir que esta invisibilidade atinge cerca de 17 milhões ou mais, de pessoas no Brasil. Este número foi levantado no último censo do IBGE que destacou que Deficiências Severas e Graves atingem cerca de 17 milhões. Sem dúvida os surdocegos, as deficiências múltiplas e as pessoas com doenças raras estão "invisíveis" neste total.

PMG: Você foi protagonista de um livro infantil cuja autora se refere a você como um herói. Você se vê dessa forma?

Alex: Este livro se chama "A Grande Revolução" e foi escrito pela escritora cearense e pessoa com deficiência visual, Rozelane Pessoa [saiba mais, clique aqui ]. O livro conta a história de Alex Garcia, um garoto surdocego que tem poderes especiais. Sua missão é lutar pela inclusão das Pessoas com Deficiência na sociedade, mas vai ter que acabar com o mal que quer destruir o planeta Terra". As crianças adoraram o livro. Fazem teatrinhos na escola e isso para mim é motivo de orgulho. Não sou herói, mas acredito, muito mesmo, que todos nós, com nossas diferenças, na realidade e verdade, somos todos, em essência, obras grandiosas. Nesta crença, que por certo, se tornou minha religião, as lutas encontram ponto de equilíbrio, e assim, sustentando meu ser incompleto, sigo adiante.

PMG: No seu livro "Surdocegueira – Empírica e Científica você conta sobre algumas dificuldades que passou. Chegar a publicação do livro já foi uma barreira superada, dada a falta de literatura sobre o tema?

Alex: O livro "Surdocegueira – Empírica e Científica" foi publicado em 2008. É a primeira e única obra até agora desenvolvida por um surdocego na América Latina e que trata da Educação de Surdocegos. Quando da orientação de outros educadores percebo a necessidade destes de terem uma referência de rápida leitura e fácil compreensão sobre o tema surdocegueira. Assim nasceu a obra. Destaco com prazer que "Surdocegueira – Empírica e Científica" é inteiramente elaborada por um Educador Surdocego. Incansavelmente busquei editora e não encontrei. Assim me cadastrei na Biblioteca Nacional como "Editor Pessoa Física" e posso editar minhas obras e todas possuem ISBN. Para quem tiver interesse, é só procurar pelo título "Surdocegueira – Empírica e Científica"

PMG: O que é diversidade para você?

Alex: Diversidade para mim é ter continuidade. É ter necessidade do movimento, negando o estático. É desejar a verdade e felicidade alicerçada na justiça do homem livre. Diversidade é negar o interesse que fabrica carimbos. Negar a Intolerância que desenha fronteiras. Diversidade é ser duro e ter razão sem perder a ternura e paixão. Diversidade é negar-se a subtrair a liberdade e autonomia do homem!

Fonte: www.maragabrilli.com.br/personagem-da-semana/547-qmeu-objetivo-e-qgolpear-as-mentesq.html

 

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