Universidade e deficiência múltipla - Surdocegueira
Meu nome é Alex Garcia, tenho 33 anos, resido na cidade de São Luiz Gonzaga, região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Sou graduado e pós-graduado, nível de especialização em Educação Especial pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, situada na região central do estado do Rio Grande do Sul. Atualmente sou Presidente da Associação Gaúcha de Pais e Amigos dos Surdocegos e Multideficientes - AGAPASM - www.agapasm.com.br e escritor. Membro da World Federation of Deafblind. Vencedor do II Prêmio Sentidos. Rotariano Honorário - Rotary Club de São Luiz Gonzaga - RS. Líder Internacional para o Emprego de Pessoas com Deficiência - Professional Program on International Leadership, Employment, and Disability (I-LEAD) pela Mobility International USA - MIUSA. Tenho experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Especial, atuando principalmente nos seguintes temas: atendimento educacional especializado, cidadania, orientações e assessorias, metodologias, direitos, inclusão, acessibilidade e patologias para Pessoas Surdocegas.
Deficiência, limitações e possibilidades:
Sou uma pessoa surdocega. Tenho deficiências de visão e audição bastante graves, o que torna a funcionalidade destes dois sentidos bastante reduzida. Deficiência congênita, porque apenas quando criança a distância que meus olhos e ouvidos alcançavam eram maiores e que com o passar dos anos esta distância continua diminuindo. Portanto, para fins de reflexão, e trazendo aqui o que sempre destaco aos educadores nos cursos e palestras que ministro: para nós surdocegos existe uma relação muito clara entre proximidade e distância e destas com nosso desenvolvimento.
Eu posso ver vultos apenas com o olho direito. Com o olho esquerdo não posso mais. Minha audição está restrita ao ouvido esquerdo com o apoio da prótese auditiva. Uso para me comunicar no computador um ampliador de tela chamado Lunar. Há muitos anos uso esse programa. Posso ainda ouvir sons muito altos e distantes como, por exemplo, o ruído de um avião ou de um foguetório. Posso ouvir música no computador usando fones de ouvido com o máximo volume dos fones e do computador. Assim, só percebo a voz humana se a pessoa falar muito próxima do meu aparelho auditivo. É claro que eu posso ver um ônibus à minha frente, mas resguardando a proporcionalidade, não há como eu enxergar as letras de um livro, só se estas estiverem bem grandes e que proporcionem um bom contraste, como acontece com o programa no computador.
A potencialidade das pessoas surdocegas é muito ampla e igual ou até mesmo superior que a potencialidade de qualquer outra pessoa. Obviamente que possuir deficiência em ambos os sentidos superiores acarreta limitações, mas estas decorrentes em sua grande maioria da inexistência de trabalhos específicos que visem nossa potencial inclusão. A acessibilidade para nós, muitas vezes é totalmente diferente do que para os cegos e para os surdos, apesar de que em muitas vezes ainda podemos utilizar meios assistivos conhecidos por cegos e surdos. A variedade de surdocegos é muito ampla. Vai desde aqueles que não podem mais utilizar funcionalmente algum resíduo até aqueles que possuem resíduos em ambos os sentidos. Também podem ser pessoas totalmente sem visão com algum resíduo auditivo ou vice-versa. Nesse sentido gostaria de destacar, a fim de colaborar com as reflexões de todos, o termo compensação. A análise deste termo pode ser útil para as pessoas compreenderem quando se é e quando não se é surdocego. Uma pessoa cega compensa sua falta de visão através de sua boa audição. Uma pessoa surda compensa a falta de sua audição pela sua boa visão. Já um surdocego não consegue fazer o mesmo, por que não possui essa capacidade de compensar um sentido pelo outro.
Sonhos e percurso acadêmico:
A minha primeira tentativa de entrar numa universidade foi fazer medicina - já pensaram em um médico surdocego? Brincadeira! Pois é, meu sonho era ser médico, mas infelizmente não tive êxito no vestibular, e acabei me lançando na educação especial, por ter o grande desejo de colaborar com outras pessoas com deficiência. Na verdade recebi incentivo de meus pais, mas também fui bastante desestimulado por outros familiares e amigos. Estes pensavam de acordo com o senso comum, de que uma pessoa com deficiência não pode educar outra pessoa com deficiência. A educação de pessoas com deficiência é feita por não deficientes.
Contudo, eu sempre tive apoio dos meus pais, então no processo de inscrição e de vestibular os tive presentes a me apoiar. Morando numa cidade e fazendo vestibular em outra, tinha que viajar, mas tudo foi plenamente organizado por meus pais. Logo depois de obter êxito no vestibular de educação especial, a expectativa maior era de que eu teria que residir em outra cidade, não tendo a presença dos meus pais ao meu lado, portanto, era o momento que chegava para que eu desse um rumo em minha vida. Com satisfação destaco que residi na casa do estudante da UFSM. Residi ali por cinco anos. Ali me tornei um ativista estudantil. Ali dei os meus primeiros passos nos movimentos sociais. Na casa do estudante me senti igual aos outros estudantes, na busca por democracia na educação e isso se tornou claro em nossas lutas, passeatas e movimentos que lá eu estava, com meu jeito de ser, com as minhas diferenças.
Na minha chegada a recepção foi muito boa. Obviamente que estavam um pouco assustados, não sabendo como se dirigir a minha pessoa tendo eu essa deficiência audiovisual. Eu encarei isso com naturalidade, por que já era uma rotina na minha vida, e não tinha motivos para achar que ali ia ser diferente.
Problemas enfrentados e soluções propostas:
Dentro da Universidade o desconhecimento sobre minha deficiência era total, apesar de estar num curso de educação especial. Os saberes na época se resumiam na área da surdez e deficiência intelectual. As descobertas da surdocegueira tiveram início com a minha chegada lá, ao montar projetos e fazer pesquisas na área com o apoio de um professor.
Dei minhas primeiras palestras sobre surdocegueira nos diversos cursos da UFSM. A principal dificuldade enfrentada foi que as aulas geralmente eram faladas, na universidade fala-se muito e foi ai que a minha falta de audição foi sentida e quando eu tentava compensar com a visão não era satisfatório.
Ao chegar à Universidade as primeiras providências que eu tomei estão diretamente ligadas àquilo que aconteceu e que me deixaram descontentes. Não sei se vou falar aqui algo que acontece também com outras pessoas com deficiência, mas parece que eu não era levado a sério. Então, buscar ser levado a sério foi a minha primeira atitude tomada.
O que eu falo sobre não ser levado a sério pode ser exemplificado quando você organiza um projeto de pesquisa e é orientado a buscar algum professor "Deus" para lhe orientar. Este professor analisa seu projeto, olha você da cabeça aos pés, e depois de muito tempo passado diz que não poderá orientá-lo, e quando acontecia a orientação, não sei por que, mas sempre a menor bolsa era para mim. A tendência então estava clara e eu teria que me defender. Teria que usar minha experiência pessoal e colocar em jogo o conhecimento de muitos professores, ignorando o fato de que eles eram os superiores. Assim eu conquistei amigos e inimigos, marquei uma época e, sem dúvida, o curso de educação especial, depois de minha passagem por lá, tomou outro rumo, bem mais inclusivo.
Assim, durante o curso, busquei dialogar, exigir materiais ampliados e um sistema de amplificação sonora. Como nossa justiça é muito lenta, eu mesmo tive que me virar conseguindo em outras associações equipamentos como lupas, também um aparelho de amplificação sonora que eu usava nas aulas, e quando consegui o programa do computador dei um grande salto por que escaneava os textos e com esse programa conseguia ler esses textos. Eu entrei na faculdade em 1997 e a palavra acessibilidade e sua relação com as pessoas com deficiência ainda não era "ouvida" em nosso meio.
Virtudes de uma Universidade acessível:
Para que uma universidade seja mais amigável e acessível para pessoas com a minha mesma deficiência, deixo alguns pedidos: Para que o piso não seja escorregadio. Para que as placas que possuem informações sejam afixadas numa altura não muito elevada e tenham avisos em braile. Para que produzam materiais ampliados e com contraste, para que tenham scanners e computador com programa de ampliação.
Gostaria também de recomendar às universidades e seus coordenadores para que busquem instruir o meio acadêmico a não pressuporem a identidade das pessoas com deficiência.
Mensagem aos amigos com a mesma deficiência:
A inclusão e a exclusão são matérias que se desenvolvem na "essência do controle". Acredito que todo tipo de exclusão é uma necessidade de controle que não funcionou ou que não está funcionando, ou seja, se não te controlo te excluo. A inclusão é o movimento que busca reverter esse quadro de controle, quadro de desigualdade e porque não dizer, quadro de subalternidade. Nós seres humanos possuímos uma necessidade muito forte de controlar o outro e isso não é uma novidade. Essa necessidade de controle é bastante mascarada e fica oculta. Sabemos que ela está em nós, mas não a declaramos abertamente. Ela só vai ser revelada no conflito, ou seja, no conflito da inclusão e exclusão. No conflito entre ganhar ou perder benefícios, de várias ordens, por exemplo. É nesse conflito que vamos observar quem exclui e quem inclui e quem é o controlador e quem é o controlado. Obviamente que esse controle ou essa necessidade de controle tem suas ferramentas de ação. Possui seus meios para se fazer valer. Uma dessas ferramentas ou meios comumente verificados é a pressuposição. A pressuposição como ferramenta de controle e exclusão significa dizer que o meio, determinados grupos ou até mesmo pessoas pressupõem o comportamento do diferente, o comportamento das pessoas com deficiência. Esse meio, grupo ou pessoa, já sabe de antemão o que a pessoa com deficiência vai fazer ou como ela vai se comportar. A pressuposição é uma "arma" muito poderosa para manter o controle. Grande número de pessoas com deficiência vivem num mundo há bastante tempo sendo manipuladas, aliciadas e excluídas e não conseguem sair ou escapar dessa pressuposição. Em minhas palestras pelo Brasil e pelo mundo sempre sou questionado: - Alex qual seria a fórmula para promover a inclusão? Apesar de não concordar com fórmulas, eu destaco a minha opinião, ou seja, - a verdadeira inclusão só será possível quando as pessoas com deficiência romperem com a pressuposição, principalmente a pressuposição de nossas identidades e comportamentos. Posso garantir a todos que tantas foram as vezes que rompi com a pressuposição que os "Deuses" que habitam nosso cotidiano, com seus desejos incontroláveis de controle já me mandaram muitas vezes para o "inferno". Mas isso é algo natural e inerente ao desejo de liberdade, não é mesmo? Então, para entrar, se manter e avançar em um curso superior e concluí-lo com êxito as pessoas surdocegas devem sempre tentar romper com a pressuposição de suas identidades.
Fonte: http://www.livroacessivel.org/universidade-acessivel-alex-garcia.php